Letra e Música
Tem músicas que a gente escuta e sobe um calafrio pela espinha, desce um nó pela garganta, estaciona no coração um aperto que assusta pelo tamanho que ocupa. São as formas que o inconsciente encontra para expressar suas necessidades e muitas vezes uma música é capaz de nos lembrar o valor de uma pessoa, um local, de uma época da vida que se perdeu e a perda forma amargas, mas também doces imagens na memória.
Existem músicas que literalmente falam conosco. Por exemplo: quando eu ouço “preciso dizer que te amo” do Cazuza, meu coração agradece. Pra cada batimento cardíaco, uma batida de palmas! Acelerando os batimentos, meu inconsciente se comunica comigo através dessa música. Cada verso reaviva na memória e no coração a imagem de um grande amor cuja trilha sonora era essa canção. Voltam lembranças, cores, consigo sentir o cheiro daquela paixão. Fotos, filmes, vídeos também tem esse poder. Mas nada se compara ao efeito que uma música alcança, quando ela toca fundo.
“E até o tempo passa arrastado, só pra eu ficar do seu lado. Você me chora dores de outro amor, se abre e acaba comigo. Mas nesse novela eu não quero ser seu amigo...não, não...”
Tudo bem, Cazuza era às vezes exageradamente genial! Mas Chico, Gil, Caetano, João Bosco, Lennon, “Miltons e seus tons” também são geniais! E se a gente fizesse um abaixo assinado pra transformar letra de música em matéria escolar? Como matemática, português e geografia.
Já posso ver a professora na sala: “meninos vamos falar de um sentimento muito presente no mundo moderno, na vida do homem adulto: a tristeza. Em termos musicais nos Estados Unidos eles classificaram a tristeza como blues. No Brasil a gente chama: dor de cotovelo, samba-canção. Meus alunos quero que vocês me digam de quem é este verso e o que ele pode significar:
“se lembra quando a gente... chegou um dia a acreditar. Que tudo era pra sempre, sem saber... que o pra sempre, sempre acaba”
Ao estudarmos letras de música nos aprofundamos em poesia, filosofia, sexualidade, em arte. Chegamos ao ponto crucial da vida: o ser humano e seus sentimentos. Por isso eu acho que em vez de votarem a CPI do Castelo ou da Petrobrás, o Senado poderia fazer algo de útil e aprovar letra de música como matéria escolar.
Podemos também encaixar “história” dentro das sub-matérias em que letras de música se dividem. Eu escutei “Since i´ve been loving you” do Led Zeppelin e não sabia se chorava ou ria. Na dúvida, fiz os dois. Ao mesmo tempo! Fui procurar mais sobre o blues inglês e descobri que o povo celta que originou a Inglaterra, era formado por tribos guerreiras que entoavam cantos fortes juntando sons da natureza aos instrumentos musicais. Nesta noite fui dormir e orei por Robert Plant e Jimmy Page. Agradeci a eles por terem feito essa obra de arte. Rock também é arte.
Ainda na Inglaterra e outra vez por causa de uma letra de música, acabei enveredando por outro assunto. Psicologia. Li em uma entrevista que Brian May, guitarrista do Queen, escreveu “Who wants to live forever” a principal música da trilha sonora do filme “Highlander” dentro do quarto de um hotel, após ler o roteiro do filme. Primeira leitura: ele não enxergou o óbvio. Que o filme trata de guerreiros que se matam até sobrar um único imortal. O pano de fundo da história se passa numa tribo celta, onde uma jovem se apaixona perdidamente por um highlander e luta bravamente por esse amor (lembrem-se os celtas são guerreiros), mas ela envelhece e morre. Brian então sabiamente nos pergunta no título da canção: “quem quer viver para sempre”?
Cristofer Lambert, o highlander imortal por quem a jovem celta se apaixona então brada no filme: “não vou mais me apaixonar, serei forte como uma rocha”. Essa frase ficou ecoando na minha cabeça e descobri na psicologia que essa tendência se chama: “indiferença emotiva”. É uma defesa. Se você não ama ninguém, não tem nada a perder. Mas convenhamos, não dá pra ser forte como uma rocha porque uma rocha não sente dor!
O que seria da poesia, escultura, cinema e das nossas letras de música sem a dor? Quando você sente na pele do que a dor é capaz, você se permite mudar. Essa é a ordem natural da vida.
Voltando as letras e as músicas: boogie oggie (uma disco song de fins dos anos 70) eu escutava de dentro da barriga da minha mãe. Devo ter escutado tanto que nasci sem cacuete nenhum pra dança. Mas outro dia ela tocou no carro, eu encostei (sou politicamente correto), liguei pra minha mãe e disse: “obrigado por me colocar nesse planeta, eu te amo”. Música além de tudo, faz a gente ficar mais emotivo.
No cinema você pode assistir ao filme: “Letra e Música” com Drew Barrymore e Hugh Grant, todos encantos e desencantos dessa mágica parceria. A internet também se rendeu a este assunto:
http://www.vagalume.com.br/ . Basta você escolher o autor ou a canção e se deliciar. Eu passo horas “estudando”. Comecei pelo capítulo nacional e fui em todos os gêneros: Ivan Lins, João Bosco, Guilherme Arantes, Djavan, Lenine, Arnaldo Antunes, Paulinho Moska, Pedro Luís e a Parede, Jota Quest, Skank, Barão Vermelho, etc...
Outro dia tentei desvendar a música “O que será, que será” do Chico. Dentro de uma perspectiva mais racional, eu queria entender se ele está falando de amor ou sexo, ou dos dois o tempo todo ou em tempos distintos ou se havia um terceiro assunto escondido. Mas de repente ele escreve: “O que não tem decência nem nunca terá O que não tem censura nem nunca terá O que não faz sentido”
Aí eu desisti da idéia porque obviamente, não faz sentido. Mas em compensação descobri que “Drão” é o nome de uma ex mulher do Gilberto Gil, que “Menino do Rio” Caetano fez em homenagem a um surfista carioca que fazia “estragos” no Rio de Janeiro dos anos 80, que você pode saber mais da vida do artista sem precisar comprar a revista Caras. Basta ler e escutar com atenção as letras, porque toda letra tem algo a dizer.
Tem letra que diz alguma coisa no MSN, no Orkut, na pichação no muro da sua rua ou na lataria do ônibus que você pega num dia triste, infeliz, daqueles que a gente nem deve sair de casa. E nesse mesmo dia, na hora do almoço, no banheiro do buteco você lê rabiscado em português errado:
“A umanidade é desumana. Mas ainda temos chance, o sol NAISCE pra todos. Só não sabe quem num quer”
A psicologia diria que esse “contato” foi feito pelo seu inconsciente. O espiritismo diria que foi um espírito do bem, o catolicismo afirmaria; foi seu anjo da guarda. Eu te digo: não importa de onde vem o contato, entenda que a vida tem suas regras e uma delas é te surpreender!
É por essa falta de sensibilidade e percepção das pessoas que eu ando um pouco cansado da vida adulta e de seus afazeres, então no meu rádio atualmente anda tocando a trilha sonora do passado. Volume máximo para reavivar tempos mais suaves, mais alegres, quase inocentes. Pensando nestes momentos, me lembrei do meu pai ouvindo João Bosco em casa, tomando um bom wisk no bar e resolvi ir fundo nessa viagem. Comecei a “estudar” e estudar João Bosco e achei uma música que definitivamente foi feita pra mim. Pelo menos se eu levar em conta meu atual estado de espírito.
“Ninguém tira do amor, ninguém tira, pois é Nem doutor nem pajé, o que queima e seduz, enlouquece O veneno da mulher O amor quando acontece a gente esquece logo que sofreu um dia, esquece sim”
Percebi então que embalado por canções, a gente pode se interessar por poesia, psicologia, arte, história ou pode se interessar em simplesmente rir ou chorar ouvindo aquela canção que toca a alma e o coração. Alguém disse que o poeta é um atleta da dor. Sei lá. Já que o nosso assunto é letra de música, só posso dizer que “eu sou poeta e não aprendi a amar”.
“Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece a outra de imediato”
Caio Fernando de Abreu